terça-feira, julho 4

Aos franceses... como Santiago aos mouros

CARTA DO CANADÁ

Fernanda Leitão

SENTIMENTO DE PERTENCER

Começo por explicar que sou uma portuguesa à antiga, educada a não brincar com coisas sérias e para quem, por isso mesmo, Mãe é Mãe, Pai é Pai, Hino é Hino, Bandeira é Bandeira. Nasci numa antiga colónia portuguesa em que, desde as primeiras letras, cantávamos o hino e rezávamos o Pai Nosso antes de iniciar um dia de aulas, numa sala onde havia crucifixo na parede.

Posto isto, adianto duas coisas: o meu interesse pelo hóquei em patins e pelo futebol resumiu-se sempre à participação internacional de Portugal em competições. A outra coisa foi a amargura indizível quando verifiquei que, por ignorância ou medo de certas forças políticas estrangeiras, umas vermelhas e outras mais descoradas, que tentaram dominar o nosso país depois de 1974, ninguém exibia a bandeira nacional nem cantava o hino.

A minha geração foi sacrificada a uma ditadura de extrema direita, estreita de vistas, farisaica, injusta, que representou um atraso de 50 anos em todos os sectores por, entre outras coisas, ser a autora moral da “descolonização exemplar” que depois fizeram uns políticos enfeudados a interesses estrangeiros. Isso deu uma grande confusão nos espíritos de todos nós, o que foi aproveitado por uns que se julgam politicamente correctos para acusarem os patriotas e os crentes de coisas sujas que só poderiam ser imagináveis por mentes sujas caldeadas no cadinho de pactos germano-russos, em tempos de Hitler e Estaline. Tão bom um como o outro. O que sobrou intacto da minha geração não podia aceitar mais nenhuma ditadura, tivesse ela a cor que tivesse, e alegremente, sem complexos, continuou a acreditar em Fátima, a gostar de fado e de futebol, a comer sardinhas assadas e a beber vinho tinto, a prezar a amizade e a lealdade. É claro que de gente desta não podia saír ninguém que assobiasse ao hino ou pisasse a bandeira. O tempo encarregou-se de demonstrar quem eram os reaccionários e os inimigos da Pátria.

Vamos agora aos finalmente, como dizia o sinhôzinho Malta duma telenovela bréjeira.

Estou a 6 mil quilómetros de Portugal e prestando uma enorme atenção ao campeonato de futebol, a exemplo dos milhões de portugueses residentes no nosso país e espalhados por todo o mundo. Estou radiante com o desparrame de bandeiras portuguesas por todo o lado, com o hino cantado e recantado, até que a voz nos doa, por multidões que precisam de ver Portugal grande em alguma coisa perante o estrangeiro.

Perdido o Império, o futebol foi pretexto para nos irmanarmos no mesmo entusiasmo, de Lisboa a Dili – e há nesta simplicidade qualquer coisa das proféticas palavras de Agostinho da Silva, o banido por Salazar que, com sacrifício de uma vida inteira, foi um missionário da Língua Portuguesa por todo o mundo.

O Portugal-Inglaterra encheu-me as medidas. Ricardo à baliza, foi ali mais do que ele, foi a vontade de todos nós. Cristiano Ronaldo, o menino que beijou a bola como quem diz “tu não me falhes”, foi ali mais do que ele: foi a crença ingénua do povo que somos. O brasileiro Scolari, rubro de entusiasmo, quase dançando, foi mais do que um grande treinador, foi ali o fio invisível que une o mundo lusófono, esse que existe onde dois seres humanos se entendam em português.

Quando o jogo acabou liguei para um amigo de Angola, como eu, o Orlando, que vive na mesma cidade que eu. Respondeu-me com a voz embargada de quem chorava. Eu fui até ao lindo e castiço Mercado de São Lourenço, em frente da minha casa, para esvaziar a tensão. Era o 1 de Julho, Dia do Canadá, e o mercado estava apinhado de pessoas alegres e descontraídas, a comprarem e petiscarem. De repente, dei com os olhos num rapagão todo embrulhado numa bandeira portuguesa, com a cara pintada com as cores da bandeira, que berrava a plenos pulmões em inglês: “O meu Portugal ganhou”. E todos aqueles estrangeiros o felicitavam, lhe davam abraços e palmadas nas costas. Fui direita a ele e disse-lhe apenas: “Lá ganhámos”. O rapagão abraçou-se a mim com as lágrimas a saltar dos olhos. E eu quase chorei. Éramos dois desconhecidos que pertenciam a uma mesma Pátria, com um sentimento de pertença sem reticências a um destino comum.

Uma amiga minha perguntou-me: “E agora?”. Pois, agora que já não temos os estados de alma que pela certa teríamos jogando com o Brasil, vamo-nos aos franceses como Santiago ao mouros.

3 comentários:

Anónimo disse...

depois desta missiva nada correu bem a Portugal, atè parece que ha bruxas

Anónimo disse...

Qual é a Pátria do rapaz da história, Portugal ou Canadá? Em Portugal ele não seria considerado Português porque é filho de emigra(nte)s e só fala inglês.

Anónimo disse...

Um abraço do Padre Cunha